NIC.br

Ir para o conteúdo
31 AGO 2023

O medo, a incerteza ou qual soberania tecnológica queremos?


Gazeta de Varginha - 31/8/23 - [gif]


Autor: Stenio Santos Sousa
Assunto: Encontro com Morozov

“Tenho um pouco de medo: medo ainda de me entregar pois o próximo instante é o desconhecido”. É Lispector (1973), em Água Viva, que resume com narrativa poética o que a nós comuns mortais resta apenas intuir: temos medo do que desconhecemos. O futuro, aquele “próximo instante”, é assustador porque incerto. Fala-se em uma “física das infinitas possibilidades” e em tal equação certamente se insere a relação do ser humano com o que é tecnológico.

O cinema, ao longo dos anos, tem nos mostrado visões distópicas de um mundo onde a tecnologia supera a humanidade. Nessa estrada caminha Kubrick (1968) ao construir o cenário que dá vida a HAL 9000, no clássico “2001, Uma Odisseia no Espaço”. Em dado instante, a inteligência artificial assume o controle da missão especial e demonstra todo seu poder e a ameaça que representa. Em “Matrix” (1999), coescrito pelas irmãs Wachowski, a humanidade vive em uma realidade virtual (“blue pill”) com exclusiva função de alimentar máquinas que dominam um mundo apocalíptico.

Apesar do medo social manifesto no elemento cultural, o século XXI tem sido notabilizado pelo uso massivo da tecnologia para a transformação da realidade circundante. O impacto tecnológico no mundo contemporâneo é inegável, assim como seu imenso potencial para a resolução definitiva de problemas de escassez, melhoria da qualidade de vida e para impulsionar inovações capazes de trazer benefícios para toda a humanidade.

No século XVIII, a primeira revolução industrial, ante as inovações tecnológicas que transformaram a produção e a economia da época, também não foi muito bem recebida pelos muitos trabalhadores que temiam a substituição de suas funções por máquinas. Entretanto, observou-se uma reconfiguração do mercado de trabalho, com o desparecimento de algumas profissões e surgimento de outras. Considerando o aumento populacional em cerca de oito vezes desde então, com nossos mais de 8 bilhões de sapiens, parece razoável concluir que a tecnologia acabou por gerar mais empregos do que os que foram perdidos.

O novo século e a ascensão das tecnologias digitais nesta quarta revolução industrial (Bria, 2020) aponta para novo desafio. A despeito de oportunidades inéditas, a automação e a inteligência artificial novamente ameaçam o trabalho humano e podem afetar gravemente a própria soberania das nações. A grande questão é saber se, no contexto das democracias, ao lado do medo e da incerteza, essa ascensão tecnológica vem sendo objeto de debate nos diferentes campos em que se insere.

Como devemos saber, a soberania, em sua essência, refere-se à capacidade de um estado ou nação de governar-se, sem interferência externa. É um conceito que tem evoluído ao longo do tempo e se manifesta de diversas formas. Um exemplo é a soberania energética, consistente na busca de independência na produção e consumo de energia, com redução da dependência de fontes externas e promoção de fontes renováveis.

No contexto das tecnologias digitais, tem sido objeto de debate o conceito de soberania digital ou tecnológica, que pode ser compreendida como a capacidade nacional de controle sobre os próprios dados e infraestruturas digitais, com pouca ou total independência de grandes corporações ou governos estrangeiros. Para Bria (2020), “os dados e a inteligência artificial (IA) são infraestruturas digitais essenciais, críticas para a atividade política e econômica”. Aliás, Bria (2020) considera os dados como “a mercadoria mais valiosa do mundo”, uma vez que é “matéria-prima da economia digital e combustível da IA”.

Durante o evento “Encontro com Evgeny Morozov” na FECAP, iniciativa do Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto BR (NIC.br) e do Comitê Gestor da Internet (CGI.br), ocorrido em 28 de agosto de 2023, o pesquisador bielorusso conhecido pelo estudo das implicações políticas e sociais do progresso tecnológico e digital, trouxe valiosas contribuições ao abordar o tema “desafiando o poder das Big Techs: soberania tecnológica e futuros digitais alternativos”.

De sua fala é possível destacar que apesar dos benefícios tecnológicos que trazem, as Big Techs não devem ser encaradas apenas como atores benevolentes dentro deste grande teatro da era digital. A imensa riqueza que detém decorre em grande parte do acesso livre e gratuito a uma quantidade imensurável de dados de seus usuários, inclusive pessoais, verdadeiro tesouro somente há pouco tempo reconhecido como tal em legislações como a GDPR europeia e a LGPD brasileira.
Segundo Morozov (NICbrvideos, 2023), as grandes empresas de tecnologia têm um poder desproporcional sobre os dados e a infraestrutura digital, o que pode comprometer a autonomia e a privacidade dos indivíduos e dos Estados. Há uma série de interesses econômicos que justificam e viabilizam suas ações, o que implica a necessidade de regulamentação e de maior responsabilidade.

Nesse sentido, a importância da soberania tecnológica e a busca por alternativas aos modelos de desenvolvimento dominados pelas plataformas tecnológicas, justifica a necessidade de infraestruturas digitais e políticas que protejam a autonomia econômica dos países (Mello, 2023). Suas reflexões alertam para os desafios geopolíticos e a urgência de adotar uma abordagem mais crítica e estratégica em relação às Big Techs, visando futuros digitais mais equitativos e responsáveis.

Entendemos que a soberania digital oferece vantagens claras: proteção contra a exploração de dados, maior controle sobre a infraestrutura digital e a possibilidade de desenvolver soluções tecnológicas adaptadas às necessidades locais. No entanto, também há desvantagens. A busca por soberania digital pode levar a uma fragmentação da internet, com cada país criando suas próprias regras e padrões. Além disso, pode haver o risco de isolacionismo digital, onde países se fecham e limitam o fluxo de informações.

A capacidade de controlar e proteger nossos dados e infraestruturas digitais como representação prática de soberania digital apresenta-se, claramente, como algo que precisa ser objeto de debates e reflexões em um ambiente democrático. No entanto, alcançar essa soberania não é uma tarefa fácil. Requer cooperação internacional, regulamentações claras e o envolvimento de diversos stakeholders, desde governos até cidadãos comuns. Daí porque o debate sobre soberania digital precisa ser qualificado e bem-informado.

A educação digital é fundamental para que as populações compreendam os riscos e oportunidades associados à tecnologia. Os países em desenvolvimento, em particular, devem priorizá-la para garantir que não sejam abandonados na corrida tecnológica. Para além de discutir tecnologia, trata-se de refletir sobre autonomia, liberdade e o direito de decidir nosso próprio destino.
Afinal, esse “próximo instante” digital é um direito a ter direitos inalienável da humanidade e das gerações futuras e devemos estar preparados para navegá-lo com sabedoria e discernimento.

Fontes consultadas:

Bria, F. (2020, 30 de novembro). Barcelona propõe a luta pela Soberania Digital. O partisano. https://outraspalavras.net/outrasmidias/barcelona-propoe-a-luta-pela-soberania-digital/

Kubrick, S. (Diretor). (1968). 2001, Uma Odisseia no Espaço [Filme]. Metro-Goldwyn-Mayer.

Lispector, C. (1973). Água Viva. Rocco.

Mello, P. C. (2023, 28 de agosto). Não basta regular, é preciso ter infraestrutura digital pública, diz especialista. Folha de S.Paulo. https://www1.folha.uol.com.br/tec/2023/08/nao-basta-regular-e-preciso-ter-infraestrutura-digital-publica-diz-especialista.shtml

NICbrvideos. (2023, 28 de agosto). Encontro com Evgeny Morozov - Desafiando o poder das Big Techs: soberania tecnológica e futuros digitais alternativos [Vídeo]. YouTube. https://www.youtube.com/watch?v=UqdIGmA1zh0&t=716s

Wachowski, L. & Wachowski, L. (Diretoras). (1999). Matrix [Filme]. Warner Bros.