Open Health: Brasil tem tecnologia para avançar no prontuário único de saúde, mas falta colaboração entre setor público e privado
Época Negócios - 23/2/2024 - [gif]
Autor: Caroline Marino
Assunto: TIC Saúde
Sistema de compartilhamento de informações e registros eletrônicos de saúde, no estilo open banking, demanda também integração de sistemas e adequação da LGPD – mas implementação é imperativa para a sobrevivência do setor, dizem especialistas
Em 2022, o Brasil deu os primeiros passos para a implementação efetiva do open health, conceito baseado na abertura de dados e informações de saúde em um ecossistema colaborativo e integrado entre os diferentes agentes envolvidos no cuidado do paciente. O ponto de partida foi uma iniciativa liderada pelo Ministério da Saúde em parceria com Agência de Saúde Suplementar (ANS), Ministério da Economia e Banco Central, com a proposta de criar um prontuário único do paciente.
De lá para cá, tivemos avanços tímidos, mas que apontam a intenção de avançar. A criação da Secretaria de Informação e Saúde Digital (SEIDIGI), responsável por formular políticas públicas orientadoras para a gestão da saúde digital, em janeiro de 2023, é um deles. Outro é o progresso da Estratégia de Saúde Digital, iniciativa do governo voltada a unificar os dados da área até 2028. Em março do mesmo ano, foram definidas sete estratégias prioritárias, como a implementação de políticas de informatização dos sistemas de saúde e a potencialização da Rede Nacional de Dados em Saúde (RNDS), plataforma nacional de interoperabilidade (troca de dados) que usa o blockchain. Foi por meio da RNDS, inclusive, que as vacinas aplicadas contra a Covid-19 foram catalogadas no Meu SUS Digital, antigo Conecte SUS.
“O app é um bom exemplo da tangibilização do open health – todos os exames e testes feitos, independentemente do local, foram armazenados no sistema”, diz Bruno Porto, sócio da PwC Brasil. Segundo ele, isso mostra que há tecnologia e o sistema está desenhado; o que falta é a colaboração e a cooperação entre instituições de saúde pública e privada para a integração das informações. “Os dados existem e estão armazenados. Muitos hospitais privados já os trocam com alguns parceiros, mas precisamos de um único local”, afirma.
De maneira prática, é necessário promover uma mudança cultural entre os elos do ecossistema – provedores, governos, empresas, pacientes – para pavimentar uma estrutura digital que permita a efetiva troca de dados e compartilhamento de informações. Porto reforça, nesse sentido, que um dos desafios é trazer atores privados para o debate. “A saúde não pode ser gerenciada por meio de pedaços de informação jogados para todos os lados”.
E essa mudança precisa progredir, pois não há outro caminho. “O open health é um imperativo de sobrevivência do setor. O aumento dos planos de saúde este ano será de 20% a 25%, e o orçamento do SUS deve crescer em torno de 40% em relação ao ano passado. Não conseguimos saber como realmente está a saúde da população e o que precisa ser feito para melhorá-la sem um sistema integrado”, diz Porto.
Mais entraves: dimensão do mercado brasileiro
Em comparação com outros países, o Brasil está relativamente atrasado. Na Austrália, por exemplo, o chamado My Health Records (MHR) foi desenvolvido em 2012 e fornece um resumo online das informações de saúde dos pacientes. O usuário tem controle sobre o que será registrado e quem tem permissão para acessar seu histórico, que tem dados sobre condições clínicas, vacinação, visitas hospitalares, alergias e medicamentos.
Já no Reino Unido, existe o Summary Care Records (SCR), um registro eletrônico das informações das pessoas que já passaram por um atendimento médico, como medicação, alergias e reações a medicamentos, além de nome, endereço, data de nascimento e número de cadastro no NHS, sistema de saúde britânico. Atualmente, 98% dos consultórios já aderiram ao sistema. Há também por lá a UK Biobank, instituição sem fins lucrativos com mais de 500 mil cadastros, na qual o usuário fornece seus dados de saúde anonimizados e com consentimento para fins de pesquisa e desenvolvimento de programas de tratamentos de doenças. Em Israel, outro case de sucesso, há 25 anos de registros médicos no sistema.
No entanto, é preciso ter em mente que há muitas diferenças entre o Brasil e esses países, começando pelos dados populacionais. Enquanto a Austrália tem 26 milhões de habitantes e o Reino Unido, 67 milhões, aqui há cerca de 203 milhões de pessoas. Além disso, são mais de 5 mil hospitais, 45 mil unidades básicas de saúde e 300 mil clínicas, de acordo com dados do Ministério da Saúde, Federação Brasileira de Hospitais e Sebrae. Só em sistemas do Datasus, estima-se que existam em torno de 400 sistemas de informação – sem considerar prontuários eletrônicos disponíveis no mercado também usados pelos estabelecimentos de saúde.
Isso sem falar no fato de o sistema de saúde brasileiro ter a peculiaridade da coexistência do público e suplementar com a fragmentação das informações – o cidadão pode ter dados clínicos nos dois sistemas ao mesmo tempo. “Cada um está em seu ambiente acumulando dados e com receio de dividi-los. A colaboração e cooperação entre as instituições de saúde são partes centrais para a efetividade do open health”, afirma Porto.
Isso porque a premissa do sistema é integrar as informações de operadoras de saúde, farmácia, indústria farmacêutica, hospitais públicos e privados, e clínicas.
“A relação público-privado é o maior desafio para a criação de um prontuário único do paciente. É essencial incentivar a troca de informações entre diferentes organizações e indivíduos”, ressalta Ricardo Moraes, CMO e diretor médico da Afya. Segundo ele, além de o modelo promover mais transparência ao setor de saúde, incentivando a troca, tem o potencial de reduzir custos. Moraes dá um exemplo prático: se alguém sofre um acidente na rua, obrigatoriamente, é o Samu que faz o resgate e o leva para a rede pública. Se depois disso, o paciente for para a rede privada, certamente irá repetir os mesmos exames, gerando custos para ambas instituições e aumentando a sinistralidade nas operadoras de saúde.
“A tentativa de unificação dos dados de saúde é um objetivo global. Os cenários norte-americano e europeu estão mais consolidados, como o modelo britânico, que tem uma conexão de informações muito grande. Outros países da Europa, como a Letônia e a Estônia, se destacam, com mais dados interconectados. Os Estados Unidos têm o mesmo objetivo, mas com a meta galgada para 2035”, diz Moraes. De acordo com ele, o Datasus já unifica os dados no Brasil, mas de maneira iniciante. Trata-se de uma diretiva pública que, atualmente, segue em tramitação e ainda precisa ser analisada pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania da Câmara dos Deputados para seguir com as aprovações.
Transformação digital precisa avançar
Os diferentes níveis de maturidade digital das instituições de saúde também devem ser superados. Em muitos locais, as prescrições ainda são feitas em papel. Segundo o relatório MoVing The Future, elaborado pela empresa de tecnologia MV, apenas 6% dos hospitais da região Norte, por exemplo, utilizam a internet para armazenamentos de informações, incluindo o Prontuário do Paciente Eletrônico. De maneira geral, de acordo com a TIC Saúde, pesquisa que analisa o uso das tecnologias nos estabelecimentos de saúde brasileiros, apesar de 97% dos locais públicos possuírem computadores e 85%, sistema eletrônico para registro de pacientes, só 42% mantêm informações clínicas e cadastrais no prontuário eletrônico.
“As soluções para as lacunas demandam tempo e investimentos em treinamentos, infraestrutura de conexão e disponibilização de sistemas que não gerem obstáculos à digitalização dos dados de saúde coletados pelos múltiplos agentes do setor, nem prejudiquem a qualidade e a confiabilidade desses dados”, explica Bernardo Santos, sócio do Madrona Fialho Advogados.
No que se refere à interoperabilidade, próxima etapa depois da digitalização dos dados e que permite a troca de informações entre sistemas de maneira segura e com agilidade, a adoção de padrões como HL7, FHIR e DICOM (que são protocolos de interoperabilidade disseminados no setor), podem ajudar, segundo Santos. “Mas isso depende de uma abordagem multissetorial, em que os prestadores de serviço de saúde, os fornecedores de tecnologia e os órgãos reguladores colaborem entre si”.
Na visão de Julia Cestari Santos, líder do Comitê de Saúde Digital do Movimento Inovação Digital (MID), é preciso estabelecer um fórum de diálogo para construir um ambiente que propicie evoluções e etapas gradativas de conectividade e interoperabilidade”, diz. De acordo com ela, nesse sentido, é fundamental aprimorar a infraestrutura tecnológica de saúde para permitir a comunicação entre esses sistemas, estabelecer padrões de comunicação uniformes e definir uma governança clara sobre quais dados serão intercambiados e como serão acessados – tanto dos serviços públicos, como nos privados.
Um novo olhar para a LGPD
Uma análise elaborada pela PwC destaca que a implementação efetiva do open health depende da adequação do projeto à Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), aprovada em 2018. A lei estabelece que as informações pessoais, incluindo o histórico completo de saúde do paciente, são consideradas dados sensíveis e requerem tratamento especial no que se refere à proteção, segurança e privacidade.
O que acontece é que há um conflito entre a lei e o modelo de dados abertos, já que o artigo 11 da LGPD veta o uso desses dados sensíveis para obtenção de vantagem econômica, a menos que haja solicitação do paciente. Isso quer dizer que o modelo precisa de regras claras para estar em conformidade com a lei. Será necessário criar mecanismos de auditoria para garantir a conformidade e rastreabilidade no compartilhamento de informações, e de sistemas de segurança da informação, como criptografia e controle de acesso para proteger os dados contra violações e uso indevido.
Julia explica que é fundamental avançar nas discussões sobre governança ao acesso dessas informações e isso deve partir de uma colaboração e construção conjunta entre conversas entre governo, estabelecimentos e serviços de saúde e setor privado. “É essencial estabelecer diretrizes claras sobre governança de acesso, direitos, responsabilidades e padrões de segurança para a troca de dados entre os entes, para proteger a privacidade do paciente e garantir a confiança no sistema”, diz.
A especialista chama a atenção para a experiência de outros setores que mostram que a fragmentação no armazenamento e a transmissão simultânea de dados podem oferecer melhor estabilidade, governança e segurança – além de ser economicamente mais viável. “Sistemas descentralizados e sincronizados, que permitem o acesso simultâneo aos dados por diversos atores, tendem a ser mais ágeis e factíveis, especialmente no complexo ecossistema de saúde com seus múltiplos players”.
Do ponto de vista de transmissão de dados, tecnologias como o blockchain, que já é utilizado em iniciativas de interoperabilidade de dados financeiros, também tem aparecido como uma alternativa na comunicação de informações de saúde. A Estônia, por exemplo, utiliza esse tipo de medida.
Fica claro que adequar-se a questões legais e regulatórias, e garantir a proteção de dados são alguns desafios imediatos para implementação do open health no país, assim como a mudança cultural. Santos, do Madrona Fialho Advogados, lembra do vazamento e alteração irregular dos dados pessoais do antigo Conecte SUS e das plataformas do Programa Nacional de Imunização, no final de 2021.
“Os incidentes perduraram por meses sem que fossem resolvidos, o que tem gerado preocupações em relação à capacidade de implementar um sistema suficientemente robusto e apto a minimizar riscos de novos incidentes”, afirma. O advogado reforça que será fundamental que a implantação de uma política nacional referente ao open health seja acompanhada de investimentos compatíveis e de medidas de cooperação que garantam a segurança dos dados de saúde armazenados.
4 desafios que precisam ser superados
Padronização dos dados: os sistemas de saúde utilizam diferentes formatos e terminologias para registar as informações do paciente. Padronizar e estruturar os dados garantirá a interoperabilidade e a integração eficaz entre os sistemas.
Privacidade e segurança: armazenar as informações de saúde do paciente requer cuidados adicionais em relação à privacidade e segurança de dados. É necessário implementar medidas de proteção adequadas para garantir que apenas pessoas autorizadas tenham acesso aos registros de saúde do paciente.
Colaboração entre instituições: a efetividade do open health exige a colaboração e cooperação entre várias instituições de saúde. Alinhar seus sistemas e processos para permitir o compartilhamento de informações exige mudança de cultura e mentalidade.
Investimento em infraestrutura e tecnologia: essa etapa inclui desde o uso de prontuários eletrônicos interoperáveis até a adoção de sistemas de armazenamento e segurança de dados. É preciso resolver também as barreiras impostas à disponibilidade de tecnologias de ponta, como o 5G. A ausência da quinta geração de internet em áreas mais remotas ou com pouca estrutura dificulta a troca de informações em tempo real, o que pode afetar a qualidade do atendimento, especialmente em situações que exigem respostas rápidas, como emergências médicas.