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31 MAR 2014

Molon: Marco Civil vai inspirar resolução global para a web






Portal PUC Rio - Digital - 31/03/2014 - [ gif ]
Autor: Jana Sampaio
Assunto: Marco Civil

Considerado “ponto de honra” para a presidente Dilma Rousseff, o Marco Civil da Internet (PL 2.126/11) foi finalmente aprovado pela Câmara na terça-feira passada (25), depois de longa queda-de-braço entre PT e PMDB da qual o princípio da neutralidade era o maior pivô. Esta Constituição da web, com direitos, deveres, responsabilidades e limites, chega ao Senado credenciada como uma das principais votações do ano. Não só pelos quase três anos de intensos debates e negociações, mas por representar uma vanguarda na regulamentação da grande rede — o que certamente será alardeado pelo governo na Conferência Mundial de Telecomunicações Internacionais, nos próximos dias 23 e 24, em São Paulo. O relator Alessandro Molon (PT-RJ), professor do Departamento de Direito da PUC-Rio, diz que a aprovação da proposta — para a qual contribuíram sugestões encaminhadas por redes sociais — não é uma vitória do governo, e sim uma “conquista da sociedade civil”. (Veja as principais mudanças em quadro no fim deste texto.)

Alguns países, como o Chile, já criaram regulamentações específicas para a rede, mas nenhuma tão ampla e completa quanto a brasileira. Assim avaliam especialistas na área e até o físico britânico Tim Berenrs-Lee, o “pai da web”. Na opinião do criador do World Wide Web, o Marco Civil é um “presente para o Brasil e para o mundo”. A própria escolha do país para sediar o encontro internacional sobre governança na internet, acredita Molon, revela-se consequência da “legislação da web”. O deputado destaca a importância da norma, que “consolida a liderança do país na vanguarda do debate sobre a internet”:

— Não antecipamos a votação por causa da conferência. O movimento foi justamente o oposto: o Brasil irá sediá-lo por causa do projeto do Marco Civil. Mas é claro que a aprovação nos dá autoridade moral para propor uma resolução nos moldes do Marco Civil em nível mundial — projeta.

Sob os holofotes do mundo, especialmente após as denúncias de espionagem feitas pelo americano Edward Snowden, ex-técnico da Agência Nacional de Segurança dos Estados Unidos (NSA), o Marco Civil é visto, pelo menos por parte da comunidade internacional, como uma largada firme para a regulamentação da web em escala global. Em meio ao jogo econômico inerente à exploração do uso da rede, um dos pontos mais delicados e complexos no rumo desse consenso remete ao equilíbrio entre segurança, vigilância, privacidade e liberdade. O relator do projeto lembra que a intenção do governo não é a de se tornar um fiscal da rede, mas de garantir a isonomia:

— O governo não quer, não deve, nem pode fiscalizar a internet. O que se deve fiscalizar é a conduta das operadoras de provedores de conexão, para garantir que os pacotes de dados obedeçam à lei, ou seja, se mantenham isonômicos — esclarece — Sem privilegiar ou prejudicar quem quer que seja na web.

Tramitando em regime de urgência, o projeto trancava a pauta da Câmara desde outubro passado. Só andou depois que o governo retirou do texto a obrigatoriedade da instalação de centros de dados no país, em troca da manutenção do princípio da neutralidade — que, na prática, impede a cobrança de valores diferentes de acordo com o conteúdo acessado. Vencida a queda-de-braço, o Planalto pode usar a proposta como munição política, avalia o coordenador do projeto Intervozes, Pedro Ekman. Ele lembra que o interesse no projeto se intensificou depois de revelado o monitoramento do governo americano a diversos países, inclusive o Brasil: 

— Isso motivou o discurso da presidente Dilma na Assembleia Geral da ONU. O Marco Civil, que já estava em construção, aparece como uma boa oportunidade de resposta ao mundo sobre como a internet deve ser tratada e como a privacidade, a liberdade de expressão e a neutralidade de rede devem ser princípios que norteiem a internet — argumenta.

Para o amadurecimento de inciativas como o Marco Civil, Ekman evoca "a necessidade de ouvir a voz das ruas". Observação semelhante fez o deputado João Arruda (PMDB-PR), no discurso que antecedeu a votação do projeto, terça-feora passada, ao advertir que "o Brasil não pode potencializar as diferenças sociais e projeto é uma demanda da sociedade, por isso está acima de quaisquer partidos".

Ao caldeirão parlamentar aquecido com os rachas entre petistas e peemedebistas, somam-se os interesses econômicos que orbitam o tal princípio da neutralidade. Operadoras de telefonia pretendiam derrubá-lo, o que permiitiria a cobrança de valores distintos pelo acesso de conteúdo na web. O acordo entre o PT e o blocão formado por PMDB e seus aliados e a concessão do governo sobre a obrigatoriedade de centros de dados no país garantiram a manutenção da neutralidade. 

Entre os pilares que sustentam o projeto, o principal deles é justamente o princípio da neutralidade de rede, que assegura a não discriminação do tráfego de conteúdos. Depois da miríade de negociações, ficou acordado que este trecho caberá a um decreto de lei da Presidência da República, mediante consulta à Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) e ao Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI).

Molon: Neutralidade da rede é a garantia democrática de acesso

Noves fora, o Marco Civil confirma-se uma das esperanças nacionais contra a invasão de privacidade na rede. Apresentado em 2011, Molon admite que o projeto ganhou força com o episódio de espionagem americana a sistemas brasileiros. A iniciativa busca delinear aspectos cibernéticos não abordados pela Carta Magna, como a privacidade dos internautas e o armazenamento de dados, o princípio da neutralidade — que esbarra na pretensão de negócios das operadoras de telefonia — e o fim do marketing dirigido. 

Um dos pontos polêmicos do Marco Civil, a neutralidade representa a igualdade de direitos de acesso à informação. Resguardá-la, argumentam os defensores do projeto, é essencial para evitar que a internet adquira um modelo de consumo próximo ao da TV paga, em que o contratante tem disponível só os canais assinalados para o seu plano.

— Sem a neutraliadde, a internet pode ser fatiada e, além de pagarmos pela velocidade de conexão, pagaríamos também pelos tipos de conteúdo a serem acessados na rede. Seriam oferecidos planos apenas com correio eletrônico e outros com a opção de ver vídeos, por exemplo. A internet deixaria de ser livre e se tornaria uma grande TV a cabo, criando um apartheid social, ao criar internautas de primeira e segunda classe — argumenta Molon — O que está em jogo é o futuro de um meio de comunicação democrático ou controlado por oligopólios mundiais.

A neutralidade estabelece, por exemplo, que não haja discriminação, ou censura, no acesso aos conteúdos online. Isso permite que qualquer site seja visitado sem que os menores fiquem desfavorecidos pelos grandes portais, que podem fazer acordos com as operadoras para ter o respectivo conteúdo acessado numa velocidade maior. Este foi o caso da empresa americana Netflix, que transmite vídeos em streaming e acertou parceria com a Comcast, gigante entre os provedores de internet. Quem deseja assistir a filmes na web nos EUA pode escolher os da Netflix, com alta velocidade. Assim o mercado torna-se desigual e menos competitivo, avaliam especialistas.

Para Ekman, a neutralidade previne que os pequenos sites e blogs, com menos acessos e patrocínio, caiam num limbo digital e tornem-se restritos a grande parcela dos internautas. Se a lei permitisse que as operadoras dessem essa preferência, reitera, o que estaria em pauta seria garantir os acordos comerciais com os provedores de conteúdo.

— A neutralidade é importante para que consumidores e cidadãos não fiquem à mercê dos interesses comerciais das corporações. Garante que quem controla a infraestrutura de internet tenha de ser neutro em relação aos conteúdos que passam pelos cabos. Isto é, as empresas de telefonia não vão poder escolher, dar preferência e muito menos decidir qual conteúdo será ou não tarifado para trafegar pela rede — observa.

Com as modificações do texto do Marco Civil, fica permitido aos provedores brasileiros vender diferentes velocidades de acesso, sem discriminar o conteúdo. Assim, um consumidor que pagar para ter 10 megabytes (Mb) vai acessar qualquer site nessa velocidade. O que desejar optar por 20Mb pagará um pouco mais para acessar também todos os sites nessa velocidade. E assim por diante. Nesse modelo a ser adotado pelo Brasil, preserva-se a possibilidade de provedores de internet terem lucro quando oferecem um serviço melhor (mais rápido) — o que, argumenta o governo, estimula investimentos. 

Mudança proposta por blocão geraria "apartheid social"

Os críticos da neutralidade dizem que o princípio restringe a liberdade dos provedores para oferecer conexões diferentes conforme demandas específicas de clientes e a aplicação obrigatória pode encarecer o serviço para todos, indistintamente. Já os favoráveis à neutralidade artgumentam que a cobrança de taxas por pacote pode, como enfatiza Molon, gerar um “apartheid social” da rede, fazendo com que o "ambiente livre para navegação" seja tarifado.

A conselheira do Comitê Gestor da Internet (CGI), Veridiana Alimonti, compara o tipo de internet a partir da cobrança de taxas com uma espécie de conexão discada, muito comum na casa dos brasileiros há alguns anos. Para ela, os serviços bloqueados prejudicariam  a socialização do direito à informação: “Se isso acontecesse, nem estaríamos mais falando em internet”.

— Para o consumidor menos favorecido, o acesso fica comprometido. Isso geraria uma exclusão digital porque a força da internet é justamente baseada no reconhecimento dessa rede como uma possibilidade de democratizar a informação — frisa.

Embora o projeto já tenha sido aprovado na Câmara, especialistas e defensores da neutralidade reiteram a importância da lei. Sem a neutralidade, reforçam, as companhias telefônicas estariam livres para cobrar preços distintos pelo tipo de conteúdo que o cliente acessasse. Para se conectar às redes sociais, baixar música e assistir a vídeos, haveria pacote diferente e, como adverte Molon, mais caro do que os restritos a e-mails.  Na opinião do relator, esse formato caracterizaria uma segregação, especialmente pelo caráter econômico:

— Só poderia pagar pelo pacote completo, o ultra, super, gold, quem tivesse muito dinheiro, porque iria custar quase R$ 500. Por isso, a neutralidade é a democratização da internet. Uma internet para todos passa pela neutralidade de rede.

Caso contrário, acrescenta, seria como propor o aumento do preço dos automóveis para diminuir o trânsito nas grandes cidades. Se o Senado aprovar o projeto e se a presidente da República o sancionar tal como está, as empresas brasileiras não poderão fazer aqui o que se tornou uma realidade nos EUA: o acerto entre um provedor e um site para que determinado conteúdo seja acessado mais rapidamente que o do concorrente.

Marco Civil é aprovado: E agora?

Acessada diariamente por cerca de 105 milhões de pessoas, segundo o Ibope Media (2° trimestre do ano passado), a internet no Brasil deu a largada para ganhar a Constituição própria. Aprovado na Câmara no dia 25 de março, o Marco Civil precisa ser validado pelo Senado e sancionado pela presidente Dilma para virar lei. Nele são estabelecidos direitos e deveres de usuários, empresas de telecomunicações, páginas da internet e governo. Estão destacadas abaixo algumas das principais mudanças na regulamentação da rede:

- Neutralidade mantida: sem taxas por pacotes: Ao contrário do que pretendiam as empresas de telefonia, o conteúdo acessado permanece indiscriminado. Ou seja, o usuário baixar vídeos, ler e-mail e entrar nas redes sociais sem pagar uma taxa específica, mas usando todas numa mesma velocidade.

 - Privacidade: O registro dos serviços prestados deve ser armazenado tanto pela operadora de telefonia, no período de um ano, quanto por sites, durante seis meses. As informações serão consideradas sigilosas e só poderão ser acessadas mediante determinação judicial.

- Ofensas na rede: O site não tem responsabilidade sobre o que é publicado pelos usuários, mas é obrigado a retirar conteúdo quando assim a Justiça determinar. E poderá ser punido se não cumprir a determinação. Caso alguém se sinta ofendido por um vídeo, é preciso pedir a remoção na Justiça.

- Pornografia da Vingança: Já no caso da divulgação de conteúdo com nudez sem autorização, o processo muda. A vítima ou seu advogado podem pedir a retirada do vídeo ou da foto diretamente ao site. (Jana Sampaio)