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04 DEZ 2017

O poder da tecnologia na inclusão de pessoas com deficiência


Época - 04/12/2017 - [gif]


Autor: Daniele Amorim e Marcos Coronato
Assunto: Projeto "Web para Todos"

Librol, Livox e Web para Todos têm projetos dedicados a essa parcela da população

O celular de Leonardo Gleison, de 30 anos, notificou algumas vezes as mensagens de Whatsapp que ele recebia durante a conversa com ÉPOCA. Seus dedos tocaram a tela do iPhone, numa velocidade difícil de acompanhar, para ouvir a leitura dos textos recebidos, feita pelo assistente da Apple “Voice Over” para cegos e deficientes visuais. Era sua esposa Camila do outro lado, perguntando uma senha para completar uma transação online. Gleison digitou a resposta com auxílio do leitor, que ditava de volta para ele quais letras estavam sendo tocadas no teclado. Concluída a conversa, em segundos, ele bloqueou a tela e voltou à entrevista. Nascido com glaucoma congênito, Gleison enxergou por pouco tempo de sua vida – entre os 4 e os 15 anos contou com visão parcial no olho direito, após um transplante de córnea. Nesse período, aprendeu a ler e escrever, antes de perder novamente a visão. A partir daí, sempre usando teclado comum apenas por memória, formou-se em análise de sistemas e tornou-se técnico de tecnologia no Instituto Laramara, onde aprendeu a viver melhor com sua deficiência. É especialista na linguagem de programação PHP – feita para programar sites.

Programar sem enxergar exige procedimentos de trabalho próprios. Gleison emprega frequentemente aplicativos que leem a tela de seu desktop para guiar sua navegação. É adepto de dois deles, NVDA e Jaws. Programação é um processo metódico, que não admite erros de digitação nem de lógica. Quando acontece, uma ferramenta chamada compilador informa o programador sobre a existência de erro e em qual linha de código ele se encontra. Para quem enxerga, consertar é fácil: relê a parte indicada e muda o que for necessário no código. Gleison tem de adotar outro método. “Com um comando, copio a linha, passo para o bloco de notas e peço para o leitor de telas ler para mim. É mais demorado, mas funciona”, afirma.

Observar Gleison trabalhando é uma aula de como ferramentas tecnológicas variadas podem tornar acessível o uso de aplicativos, de software e da internet, a pessoas com diferentes deficiências (e segundo um levantamento feito por IBGE e Ministério da Saúde em 2013, 6,2% da população brasileira, cerca de 12 milhões de pessoas, tem alguma deficiência auditiva, visual, intelectual ou física). A questão foi levantada no primeiro dia do Enem (Exame Nacional do Ensino Médio), 5 de novembro, no tema da redação: “Desafios para a Formação Educacional de Surdos no Brasil”. Felizmente, desenvolvedores de tecnologia no Brasil atentam para o problema. Projetos de software e aplicativos de diferentes partes do país trabalham pela acessibilidade e pela inclusão. Conheça alguns deles.

Librol
A estudante Raíra Carvalho estava no terceiro ano do Ensino Médio quando percebeu a dificuldade de um colega de classe em compreender o conteúdo da aula.
Ele era surdo e, como seu primeiro idioma era Libras, não lia bem em português. Por isso, precisava da ajuda de um tradutor para compreender textos escritos no livro e na lousa. Raíra entendeu que a tradução não obedecia a ordem gramatical do português. Uma frase como “Meu sobrinho vai se formar engenheiro em dezembro”, em Libras, vira algo como “Dezembro agora sobrinho meu formatura engenheiro” – isso é o que se chama Libras escrito. Para aqueles cujo primeiro idioma é Libras, essa construção aparentemente estranha é mais compreensível do que a redação padrão em português. Em 2014, um ano após se formar no colégio, ela desenvolveu o programa Librol junto com três amigos em Vitória da Conquista (BA). Funciona assim: o usuário copia o texto em português que quer ler e o programa o traduz para Libras escrito. Assim, o aplicativo dá autonomia para que surdos e deficientes auditivos não precisem de tradutores para compreender textos.
“Fizemos testes com um grupo de 10 pessoas surdas em 2014”, afirma Raíra. Os testes da primeira versão do programa tiveram 80% de acerto na traduções. Três anos depois, o Librol ganhou dois prêmios. Seus criadores se preparam para lançar o software em linguagem Phyton e se aproximar dos 100% de acertos na tradução. “Nosso objetivo é que no futuro o aplicativo seja um botão, como se estivesse acoplado ao navegador e que com um comando o usuário possa traduzir do português para a libras escrito” afirma Marcelo Leitão, co-fundador do projeto.

Livox
Carlos Edmar Pereira e Aline Costa Pereira queriam se comunicar melhor com a filha Clara, que tem paralisia cerebral. Isso levou Carlos a reunir uma equipe de colaboradores para criar o Livox –  um aplicativo para tablets Android que auxilia a comunicação de pessoas com deficiências motora, cognitiva, visual e intelectual. A Organização das Nações Unidas (ONU) premiou o software em 2015 como melhor aplicativo de inclusão do mundo. A plataforma é adaptada com a separação de imagens, vídeos ou sons por tema e o usuário pode indicar para seus responsáveis o que deseja fazer no momento. Atualmente, o aplicativo é usado por 5 mil pessoas entre professores e alunos da rede municipal de escolas da cidade de Recife, em Pernambuco.

CPqD Alcance e CPqD Alcance+
Criado para celulares Android, o CPqD Alcance é um aplicativo idealizado por Claudinei Martins que facilita a navegação de cegos e pessoas com baixa visão. O projeto é um trabalho em conjunto do CPqD (Centro de Pesquisa e Desenvolvimento em Telecomunicações) com o Centro de Prevenção à Cegueira (CPC) de Americana, interior de São Paulo. O CPC auxiliou nos testes de aprimoramento do aplicativo para adequá-lo às necessidades dos usuários. A primeira versão do app foi lançada em 2013 com um menu separado em oito áreas com diferentes ações para o usuário, como efetuar ligações, enviar mensagens, ver contatos, calendário e porcentagem de bateria. Com toques, os botões “falam” suas funções e o deficiente visual se guia pelo som para usar o celular. Em julho de 2017, uma nova versão do aplicativo foi incluída na loja da Google Play. O CPqD Alcance+ foi lançado com funcionalidades que incluíam acesso a previsão do tempo, notícias e email.

HandTalk
Em 2008, Ronaldo Thenório sugeriu para um trabalho da sua faculdade de Publicidade a criação de um aplicativo para pessoas não-surdas pudessem também se comunicar com surdos por meios de Libras. O foco da disciplina era desenvolver um projeto na área de comunicação e ele pensou na parcela da população brasileira que não ouve. “Não é necessário ter ninguém surdo na família para saber que é necessário trabalhar com acessibilidade”. A ideia do trabalho ficou engavetada por quatro anos. Em 2012, com seus sócios Carlos Wanderlan (analista de sistemas) e Thadeu Luz (arquiteto especialista em 3D), eles retomaram a iniciativa e venceram o campeonato de startups Demoday Alagoas. No ano seguinte, o Hand Talk estava nas plataformas de celulares Android e IOS para ser baixado gratuitamente. O aplicativo para celulares do HandTalk tem o assistente virtual Hugo, que traduz do português (texto ou voz) para Libras, por meio de um avatar. A versão web paga se destina a desenvolvedores de sites que queiram torná-los acessíveis.

Giulia
Criado em 2014 pelo professor Manuel Cardoso, o aplicativo Giulia capta os gestos dos surdos e deficientes auditivos em Libras e os transforma em texto e áudio em português. A ideia do aplicativo surgiu com a ida do professor a uma feira em Boston, nos Estados Unidos. Lá ele conheceu uma pulseira que registrava os movimentos dos usuários para uso em jogos eletrônicos. Ele adaptou a ferramenta para seu uso no Giulia. Smartphones mais novos possuem a tecnologia necessária para rodar sozinhos a versão mais recente do programa e captar os gestos. O Giulia está disponível no Google Play. Mesmo com a criação de aplicativos para a inclusão de pessoas com deficiência, Gleison tem suas ressalvas para essas iniciativas. “A tecnologia não deveria ser feita para pessoas com deficiência, e sim, os aplicativos deveriam ser pensados para incluir todos os tipos de usuários”.

Web para Todos
O movimento “Web para Todos” dissemina conhecimento para que desenvolvedores criem sites acessíveis a pessoas com deficiências. O movimento foi criado em setembro deste ano pela jornalista Simone Freire junto com 21 organizações, que perceberam a falta de inclusão digital para grupos com algum tipo de dificuldade. ”Quando os sites se adequam, abrem espaço para um novo público”, diz Simone. O projeto fez um levantamento na época de sua abertura que evidencia ainda mais o problema de acessibilidade na educação brasileira. O Web para Todos analisou 10 sites de universidades e escolas de ensino médio brasileiras e notou que nenhum deles possuía audiodescrição -- que auxilia os portadores de deficiência visual - ou tradução para Libras.