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04 DEZ 2006

Entrevista: pai da internet afirma que é difícil censurar a web






Arquivo do Clipping 2006

Veículo: IDG Now!
Data: 04/12/2006
Assunto: ICANN

São Paulo - Em visita ao Brasil para reunião do ICANN, Vint Cerf avalia o papel da entidade e polêmicas da rede que ajudou a criar.

A internet que Vint Cerf ajudou a criar, com a invenção do protocolo TCP/IP na década de 60, já ganhou o termo 2.0, mudou os rumos da indústria do entretenimento, mexeu com conceitos de liberdade de expressão, privacidade e está sob olhares atentos de órgãos governamentais.

Como presidente da diretoria do ICANN (Internet Corporation for Assigned Names and Numbers), Cerf conversou por telefone com o IDG Now! pouco antes de vir ao Brasil para a reunião da entidade que organiza a concessão de domínios e de endereços IP no mundo, esta semana, em São Paulo.

Nesta entrevista, Cerf, que também é vice-presidente e evangelista do Google, avalia a identificação dos internautas, as mudanças no papel do ICANN, a internacionalização do registro de domínios e o futuro do You Tube, cuja aquisição ele mesmo previu há seis meses, quando esteve no Brasil. Confira.

Recentemente, o senado brasileiro avaliou uma lei polêmica pedindo o registro de internautas no Brasil. O senhor acha que esse tipo de medida pode ser eficiente para combater o cibercrime?

Nos Estados Unidos é comum que o internauta forneça algum número de identificação para ter acesso em lugares públicos como hotspots, como número de cartão de crédito ou endereço. Em muitos cases, além do cartão você deve fornecer seu endereço para provar que é realmente a pessoa que diz ser. De certa forma, os provedores de acesso à internet já possuem informações confidenciais dos internautas. Se você assina um serviço de banda larga é muito pouco provável que o provedor forneça este serviço sem saber quem você é, ou ter pelo menos o número do seu cartão de crédito, seu endereço e sua conta bancária. Diria que, em muitas instâncias do acesso à internet, os provedores já possuem um montante de informações pessoais sobre os usuários.

Mas o sr. concorda que eles deveriam ser obrigados a guardar informações por um determinado período e fornecê-las à Justiça?

O interessante desta questão é avaliar em quais condições os provedores deveriam fornecer informações para o suporte à lei. Não estou familiarizado com a lei brasileira, mas nos Estados Unidos você tem ordens judiciais para obter certos tipos de informação. De certa forma, podemos entender que não deixa de ser um pedido razoável. Existe o mesmo processo com o telefone. Provavelmente, em muitos casos judiciais, ligações e mensagens telefônicas são solicitadas como provas em tribunais.

Minha primeira impressão é que isso não parece terrivelmente diferente das práticas aplicadas por aí. Temos de imaginar que se isso for aprovado de alguma forma pode parecer mais ameaçador para os internautas que acreditavam ser mais anônimos do são. E eles não são. Acho certo dizer que, para a maioria dos provedores que cobram pelos serviços, existem de fato várias formas de rastrear e descobrir quem você é. Até em universidades você precisa fazer um registro antes de acessar a rede.

Países como China, Irã, Síria, Brasil, Cuba e Rússia buscam uma estrutura internacionalizada de internet, mas não atingiram este objetivo até o momento. Se isso for levado adiante, teríamos um risco de ver a liberdade de expressão ameaçada?

Nos Estados Unidos existem leis para restringir o que é dito ou mostrado na TV ou no rádio. A internet é outro meio, mais aberto do que os outros e pode ser atingido por uma massa muito grande de pessoas. Quando você fala na internet, potencialmente está falando para a comunidade global, ao contrário de outras mídias às quais os cidadãos comuns têm acesso. Você pode ter problemas ao escrever uma manchete em um jornal local ou nacional, mas pode facilmente colocá-la em um blog.

A acessibilidade da internet e sua expressão como mídia é notável em relação a outros meios. Eu apontaria que há pesquisas sobre o que é permitido ou não na rede em uma série de países. Somente mencionando a França ou a Alemanha é ilegal fazer determinados tipos de publicidade na internet. Outro exemplo bem comum na China sobre as restrições do que pode ser publicado na internet.

A parte difícil da restrição é que o conteúdo é acessível no mundo tudo. Esse é o potencial que este tipo de tecnologia tem. É por isso que é tão difícil implementar esses tipos de restrições. Se há alguma restrição sobre o que é acessado em um site no Brasil, você pode colocar o site hospedado em outro país onde isso não é restrito. Outra opção é colocar filtros sobre o que é possível ver na internet, que é o que os chineses fazem, mas ainda assim é possível criar um túnel para acessar a internet de fora, ir a outra parte do mundo, da rede e essencialmente acessar o que você quiser.

A experiência que tenho é que o internauta que tentar acessar um conteúdo proibido recebe uma mensagem dizendo que o conteúdo que ele deseja acessar é restrito e que se ele for pego acessando ou distribuindo o conteúdo o governo vai tomar alguma medida. Se você quiser se manter nos negócios nestes tipos de países deve ser mais cuidadoso com o que coloca na rede. Particularmente, o Google na China, onde o governo essencialmente não quer exibir certos materiais para os cidadãos, o Google teve de limitar algumas das respostas às buscas operando de acordo com as leis.

Foi uma decisão difícil entrar na China?

Sim, foi. Discutimos isso dentro da empresa por mais de um ano. E procuramos fornecer o máximo de informações que podíamos aos cidadãos chineses, mas tivemos de limitá-los. Começamos não oferecendo, por exemplo, serviços de e-mail ou blog, porque não queríamos evitar o processo de o governo vir nos pedir para retirarmos do ar os materiais [nestes serviços]. Tentamos evitar colocar os cidadãos chineses que estavam usando nossos serviços em risco, de todas as formas possíveis.

O editor-chefe da revista Wired, Chris Anderson, escreveu um artigo para a revista The Economist afirmando que a internet estaria matando os jornais, a indústria fonográfica e a televisão. O senhor acredita que a internet esteja fazendo isso?

Na verdade, não. O interessante da internet é que ela, tecnicamente, tem capacidade de funcionar como um rádio, reproduzir músicas e operar como uma TV oferecendo vídeos. E todas essas coisas foram digitalizadas e tratadas como arquivos. Está claro que alguns usuários de internet abusaram desta capacidade técnica e a usaram para distribuir conteúdos licenciados sem pagar direitos autorais. E é inquestionável que a tecnologia pode e foi explorada desta forma.

Por outro lado, entramos em um período em que a informação está em uma forma muito 'invisível' que torna muito mais fácil a cópia e a distribuição. Isso está forçando algumas empresas da indústria de entretenimento a repensarem seu modelos de negócios. A Apple é um exemplo de uma empresa que repensou o modelo de distribuição de músicas. Meu palpite é que, com o tempo, uma parcela maior da indústria vai chegar à conclusão de que deve tirar vantagem destas características da distribuição de conteúdos digitais, ao invés de inibir esse avanço.

Por exemplo, alguns produtores de filmes estão licenciando a tecnologia do BitTorrent para distribuir vídeos e filmes encriptados e o usuário tem acesso recebendo uma chave criptográfica para abrir o conteúdo após o pagamento. É um exemplo de adaptar a tecnologia disponível em algo acessível ao negócio.

Deixe-me citar outro exemplo: houve um tempo de muito nervosismo na indústria do entretenimento sobre os videocassetes e gravadores de DVD. As empresas achavam que perderiam suas receitas porque as pessoas iriam copiar os filmes, distribuí-los e colocá-los na rede. Muitos anos depois, se você olhar agora para a indústria cinematográfica descobrirá que eles fazem quatro vezes mais dinheiro com a venda de DVDs do que nos cinemas. Eles estão tirando uma vantagem econômica importante da tecnologia. Então acho que ainda estamos em um estágio bem inicial na internet em tentar entender como as pessoas usarão a tecnologia. Minha previsão é que serão descobertas formas mais inteligentes de distribuir conteúdos de entretenimento na internet.

Falando em vídeos, da última vez que o sr. esteve no Brasil, em junho, previu que a comunidade de vídeos You Tube seria adquirida. E foi comprada recentemente por 1,6 bilhão de dólares pelo próprio Google. Esta é uma forma de exploração comercial deste fenômeno?

Sim. O que Google fez foi usar mais uma vez a publicidade como uma forma de pagar pelo custo do entretenimento. E a noção de entretenimento é muito maior do que simplesmente o modelo tradicional da televisão ou do cinema. As pessoas buscam vídeos curtos de dois ou três minutos e as pessoas se divertem e buscam assisti-los. Com a associação de anúncios nas páginas onde estes vídeos são vistos há uma oportunidade de gerar receita. Existe uma preocupação sensível com a possibilidade de conteúdo distribuído sem direitos autorais não só no YouTube como em muitos outros serviços de vídeo na internet. Acho que mais uma vez a comunidade está trabalhando para entender como alinhar o serviço com a lei. Outra alternativa é debate se haverá uma grande mudança para adaptar a tecnologia a isso.

O senhor vê o movimento da Web 2.0 como uma forma de tornar a internet mais colaborativa e inteligente?

A resposta é absolutamente sim. Mesmo no estágio inicial, mesmo antes de existir a internet, quando sua predecessora, a ARPNet, foi construída, uma das primeiras aplicações desenvolvidas foi o correio eletrônico. E uma das primeiras funções foi dar suporte para que as pessoas trabalhassem em conjunto de uma forma colaborativa.

O Google, por exemplo, foi absolutamente persuadido por este ambiente online como uma ferramenta importante para ajudar as pessoas a trabalharem juntas. Entre as ferramentas estão o Google Calendar, que permite que as pessoas coordenem suas agendas de atividades, ou o editor online que permite a colaboração com textos. Até o Google Earth pode ser visto como uma ferramenta de colaboração. Acreditamos fortemente que esse tipo de troca online é uma maneira muito importante de contribuir para que as pessoas trabalhem cada vez mais integradas. Acho que isso vai evoluir muito mais com o tempo.

A evolução da internet parece muito mais acelerada do que há poucos anos. O senhor tem essa impressão?

Sim, tenho. Temos visto, por exemplo, a colaboração científica evoluindo dramaticamente com a oferta de mais informações na rede. Experimentos físicos ou o projeto do genoma humano são exemplos e você pode ampliar isso a muitas áreas. Web 2.0 é mais um termo de marketing. Mas dispensando isso, podemos ver muitos serviços web viabilizando processos de negócios entre empresas. É uma forma diferente de colaboração, onde vemos empresas trocando informações de contas a pagar, pedidos de compra e muitas funções que podem interagir com fornecedores e clientes. O protocolos da internet permitem que isso seja cada vez mais automático. Parte do conceito de web 2.0 também envolve a colaboração nos negócios.

Órgãos como a ONU e a ITU estão se movimentando para ganhar espaço nas definições políticas relacionadas à internet. Isso pode modificar o papel do ICANN nos próximos anos?

Acompanhamos com muito interesse a conferência mundial da Sociedade da Informação. Muitos membros do ICANN participaram do encontro. Minha impressão é que muitas pessoas estão olhando a internet como numa ferramenta importante para o desenvolvimento econômico e cultural. O papel do ICANN está muito mais centrado nos aspectos tecnológicos da internet, principalmente no sistema de nomes de domínios, a alocação de endereços web, detalhes do protocolo da internet. Mas muitos destes aspectos envolvem políticas públicas.

Uma das coisas que devem emergir em 2007 é a avaliação do papel do conselho governamental na formulação de políticas para as implementações tecnológicas. Outra coisa que vamos ver é um novo framework para a criação dos top level domains. Acho que ainda veremos a incorporação de nomes de domínios internacionais em diferentes alfabetos, como o árabe ou o hebraico, permitindo que pessoas cujas línguas nativas não são o inglês, ou pessoas com dificuldades em se expressar em caracteres do latim, possam acessar a internet mais facilmente.

E como o ICANN está lidando com esse fato de que os domínios não podem ser mais restritos a números e letras de A a Z?

Preciso dizer que é tecnicamente bem difícil fazer isso de forma a proteger os usuários da internet de registros de domínios confusos. Um pequeno exemplo do quão difícil isso pode ser é que existem letras em grego, cirílico e latim que são praticamente iguais. Elas não significam a mesma coisa, mas se parecem. O resultado é que você pode ter dois ou três registros que são iguais, em três alfabetos diferentes. Isso pode ser confuso para o usuário que está digitando o domínio.

Estamos trabalhando em formas de proteger quem registra e usa estes domínios. Está claro que, para fazermos isso de uma forma correta, vamos ter de estabelecer algumas restrições sobre quais caracteres podem ser usados ou como podem ser usados na hora do registro. E em algumas culturas existem caracteres permitidos, mas as combinações não. Na Tailândia, o nome do rei mal interpretado na combinação de nomes de domínio, por exemplo, é um problema. Mas estou confiante de que vamos achar uma forma de tornar mais amplo o registro de nomes de domínio do que no passado.

O que deve acontecer em 2009 quando o ICANN se tornar independente do Departamento de Comércio dos Estados Unidos?

Demos um passo grande revisando o acordo com o Departamento de Comércio. Este acordo mostra mudanças em nosso papel. Acho que a maior pergunta que pode surgir é que em 2009, ou até antes - porque a avaliação deste relacionamento formal tem um prazo que pode ser cumprido em um ano e meio - é que haverá uma oportunidade, nos próximos 18 ou 24 meses, de rever como permitir que os governos em geral participem de forma mais ativa no processo de criar políticas no ICANN.

Muitos países já expressaram isso, como a China. Acho que em 2007 vamos avaliar isso no conselho governamental. Espero que outras questões que estão associadas à internet fora do ICANN como fraudes e abusos também ganhem atenção e condutas legais. Eles devem ser endereçados fora porque não estão em nosso escopo.

Esses assuntos relacionados a crimes na internet podem vir a ser endereçados dentro do ICANN?

Francamente, espero que não. É difícil para o ICANN lidar com as atuais responsabilidades. E acho que outras entidades, que lidam com isso de forma dedicada, podem fazer melhor o trabalho, como órgãos ligados à proteção de direitos autorais, ou a negócios. É possível que organizações que ainda não existam sejam criadas para lidar com assuntos internacionais. Ainda não sei quais seriam, mas no caso legal você tem hoje a Interpol. Conforme descobrimos mais e mais formas de uso da internet pelas pessoas, são necessários outros órgãos internacionais para tornar os processos de uso da rede mais aceitáveis e regulamentados.

Quais são suas expectativas após a reunião do ICANN em São Paulo?

Temos muitas metas na agenda do conselho, que serão discutidas em São Paulo. Entre elas estão os formatos das reuniões do ICANN - que acontecem presencialmente três vezes por ano, sendo que o conselho principal se reúne uma vez por mês remotamente -, internacionalização de nomes de domínio, uso deles no mercado - especialmente os aspectos associados a registros usados como propaganda - olharemos para os trabalhos do comitê governamental, vamos formalizar contratos para os registros dos nomes de domínio com terminações .biz, .info e .org , vamos ratificar organizações regionais para América Latina e América Central, discutir as políticas para a adoção do sistema de nomes de domínios de primeiro nível com códigos genéricos (gTLD), além de discutirmos o modelo de sustentação do ICANN.